Junta de Freguesia de Pampilhosa Junta de Freguesia de Pampilhosa

Personalidades

Maria das Dores Sousa Christina (1917 - 2007)

Registo de sua sobrinha Maria Clara Cristina Pires (revista “Pampilhosa. Uma Terra e Um Povo” n.º 39 - GEDEPA 2020)

[Os anos que seguiram à fundação do Grupo Etnográfico da Pampilhosa (GEDEPA), em 1979] foram muito gratificantes para todos, porque no seguimento de um período no pós 25 de Abril, marcado por algum desconforto inerente a tomadas de posição mais exaltadas, havia de novo algo a reunir as pessoas da terra. Nessa altura eu não vivia na Pampilhosa, mas, de cada vez que vinha de visita, ouvia o relato entusiasmado de todas as iniciativas em que [a minha Tia] estava metida, das descobertas e achados por ela e outros elementos do GEDEPA. E que achados! Foi uma época ativa de procura de testemunhos das pessoas mais velhas da terra, testemunhos sobre um passado já relativamente longínquo sobre os costumes, usos e tradições locais. O interesse foi tal que as pessoas começaram a doar coisas já sem uso, mas que lhes eram queridas. Foi o começo do museu. Para guardar e expor esse acervo dos afetos, a minha Tia cedeu uma parte do rés-do-chão da sua casa. Aos domingos, depois da missa, a porta estava aberta para quem quisesse ver as louças, os lenços e chapéus de outros tempos. Durante algum tempo também o seu escritório foi invadido por muitos sacos cheios de papéis, sujos, empoeirados, senão mesmo cobertos de excrementos, que tinham sido recolhidos na casa Melo. Com imensa paciência, perícia e perseverança limpou, leu e ordenou centenas de documentos, testemunhas da vida económica da casa Melo, ao longo de um século. Entre os muitos papéis encontrados, ela deu “por um rolito de papel, grosso, entalado atrás de uma porta, como se estivesse a servir de calço”. Depois de o desenrolar, viu com o seu olho de filatelista, habituada a ver os mais minuciosos detalhes de filigrana ou denteado de um selo, que “ali havia qualquer coisa”. Cuidadosamente limpou o papel e viu “uma carinha”. Numa altura em que foi a Lisboa levou o achado ao Instituto Ricardo Espírito Santo e foi assim que o espólio do museu ficou enriquecido com um retrato atribuído à escola de Josefa de Óbidos. Não sei quem pagou as despesas. Talvez ela mesma. Durante muitos anos ela deu do seu tempo e dinheiro para o GEDEPA. Foram muitos dias que passou em arquivos em Aveiro e em Coimbra a fazer pesquisa para escrever os quarenta e dois artigos que publicou regularmente ao longo de quase 20 anos na revista Pampilhosa. Uma Terra e um Povo. Esta foi, sem dúvida, a fase de maior criatividade da sua vida. 

Nasceu em Santarém a 22 de maio de 1917. Há uma fotografia dela, com meses, ao colo da sua mãe, Dulce de Almeida Ferreira de Sousa Cristina, rodeada de inúmeros tios e tias, de seu pai e seus avós maternos. Estes tinham tido cinco filhos, mas até essa altura havia uma única neta. Os meus avós, que tinham casado tarde, receberam a primeira filha com grande alegria. Sempre um pouco enfermiça, era cliente segura de variadíssimos remédios contra a anemia que o avô, médico, o Dr. Salvador Maria de Sousa, lhe receitava. 

Passados dez anos a tragédia caiu sobre a família Cristina - a minha avó Dulce adoeceu com cancro do seio e acabou por morrer em 1929, deixando duas crianças órfãs (a minha Mãe, Maria de Lurdes, tinha nascido em 1920). Como educar duas meninas tão novinhas? A minha mãe foi para Lisboa para casa de uma tia e madrinha; Maria das Dores foi para Santarém para casa dos avós, debaixo da vigilância médica do avô. Teve a sorte de poder frequentar o que era a melhor escola de Santarém: o Colégio Andaluz, onde criou um círculo de amigas para a vida inteira. Não acabou o sexto ano porque os avós morreram e ambas as irmãs voltaram para a Pampilhosa, onde assumiram, sobretudo a minha mãe, o governo da casa. Desses anos de exílio, saíram com uma educação tradicional para jovens daquela época: português, francês, piano, história e geografa, tricot, rendas e bordados. Maria das Dores era especialmente dotada para o bordado, em que era perfeitíssima, como aliás para todo o trabalho de mãos que exigisse minúcia, paciência e leveza. Nas suas fotografias de juventude vemos uma jovem mulher, muito risonha - quando se ria chegava às lágrimas - muito sociável - foram inúmeros os namorados. Mas nunca quis casar, por medo, disse-me uma vez muito mais tarde. Lembro-me do meu espanto quando percebi que ela era irmã da minha mãe, por serem tão diferentes de temperamento e interesses. Admirava o que às vezes lhe era censurado - o não se portar como convinha à sua idade, isto é, usar cores garridas, organizar bailes e não falhar nenhuma dança, coisas sem significado agora, mas que eram quase doutrina naqueles anos de chumbo. Outras peculiaridades eram não querer que lhe chamássemos tia, ser uma jardineira dedicada, uma especialista de tulipas e gladíolos de todas as cores, prontos para o altar em dia de Páscoa ou durante o mês de maio. No fim de 1960 morre o pai, o meu avô Albano Ferreira Cristina, um choque quase sísmico para todos nós. E aí, Maria das Dores, depois dos 44 anos, começa a reinventar-se. Volta aos seus livros de colégio e recomeça a estudar para fazer os exames de segundo ciclo do liceu. Depois, seguindo o exemplo de duas outras senhoras da Pampilhosa, as saudosas “meninas Quinhas” (as irmãs Maria e Laura Lindo), candidata-se e obtém um posto de regente do ensino primário. Quando, depois do 25 de Abril, aparece a possibilidade de se formar, completa o curso do Magistério do ensino primário. Já tem 59 anos. Não sei se como regente ou já professora, fui, uma vez, passar um dia com ela, à Silvã. Eu própria já ensinava e pude apreciar no seu justo valor todo o trabalho e empenho que a minha Tia punha na preparação de desenhos, quadros, colagens, como suportes didáticos. Ainda recentemente achei uma caixa cheia de recortes para colagens que não chegaram a ser feitas. Não havia calendário, cartão de boas festas ou mesmo papel de embrulho que não fossem cuidadosamente guardados. 

A sua relação com os alunos era ótima. Fomos todos em visita de estudo a um sítio onde havia centenas de fósseis e lembro bem os risos, gritinhos, outros sinais de entusiasmo daquelas crianças, que todas queriam apresentar o tesouro mais precioso à senhora professora. Não tendo sido uma tia especialmente dada a tagatés - sempre nos tratou como gente crescida - era, no entanto, muito generosa e deixava-nos partilhar os seus tesouros de infância, livrinhos feitos por ela que nós líamos todos os domingos enquanto esperávamos que nos chamassem para o almoço. E sempre que se tratava de explicar uma das suas paixões tinha toda a paciência do mundo. Infelizmente nunca me apaixonei por bordados, mas desde os onze anos aprendi com ela tudo o que é preciso sobre selos. E não há vez nenhuma em que trabalhe na coleção que não me lembre daquela senhora pequenina que, ao longo de noventa anos de existência, entrou nas vidas de tanta gente.

Maria das Dores de Sousa Christina faleceu na Pampilhosa em 2007, com 90 anos.





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